AGENTES PÚBLICOS NA PANDEMIA. ERRO GROSSEIRO E OUTRAS GROSSERIAS
A Medida Provisória nª 966, de 13 de maio de 2020 veio para “proteger” os agentes públicos nesse período difícil que vivemos, onde uma pandemia causada pelo Coronavírus nos obriga a refletir sobre questões que nos tiram do conforto de nosso cotidiano.
Assim, é certo que o gestor público, diante da ausência de leitos hospitalares, terá, sim, que tomar decisões que antes da pandemia eram impensáveis, como escolher quem deve ser atendido, quem morrerá em casa, quais medicamentos e equipamentos devem ser comprados, como distribuir mantimentos à população carente, entre tantas outras escolhas duras e inevitáveis que, ou já se instalaram na realidade administrativa, ou estão muito próximas de serem tomadas.
Portanto, uma norma que retire a preocupação (sempre constante, em qualquer tempo, na mente de gestores públicos comprometidos com os interesses coletivos) sobre responsabilidades de atos tomados em situações de urgência, calamitosas, extraordinárias, é realmente muito útil e libera o agente público de equações mentais que, no mais das vezes, arriscariam as vidas que estão em jogo nesse momento.
Porém, é preciso reconhecer um efeito perverso na MP 966.
A MP estabelece uma espécie de mitigação da responsabilidade objetiva, tradicionalmente incidente no campo administrativo em nosso país. E faz isso de uma maneira que abre todos os tipos de portas ao abuso de gestão e desvios de finalidade que possam ser imaginados.
É que a responsabilidade objetiva do Estado, conforme consagrado na Constituição Federal, estabelece o dever estatal de indenizar independentemente de dolo ou culpa. No texto da MP 966, parece que a lógica se inverte para somente atribuir ao Estado a responsabilidade na presença de dolo ou culpa graves.
Ainda que a MP trate de agentes públicos, não da pessoa jurídica estatal, é possível inferir a dificuldade que se estabelecerá para a responsabilização da Administração Pública nas esferas civil e administrativa quando se partir da necessidade de apontar a conduta (sempre realizada por pessoas, portanto agentes públicos) que gerou o dano.
Assim é que, nos casos relacionados à Covid-19, o agente público somente poderá ser responsabilizado nas esferas civil e administrativa no caso de agir ou se omitir com dolo ou erro grosseiro.
Quanto ao dolo, pouca dúvida deve aparecer, pois se trata, grosso modo, da intenção do agente na direção do cometimento do ato ilícito.
A confusão estará no tal “erro grosseiro” a que se refere a MP.
Para a Medida Provisória 933, erro grosseiro é aquele erro “manifesto, evidente e inescusável praticado com culpa grave, caracterizado por ação ou omissão com elevado grau de negligência, imprudência ou imperícia”.
E tem mais, na avaliação do “erro grosseiro”, devem ser considerados:
Fica claro que, embora a nova regra possa orientar decisões de modo mais eficiente e, como dito, liberando o gestor de conjecturas de ordem fiscalizatória a fim de prover ass necessidade imediatas e urgentes dos administrados, a flexibilização que a MP impõe é um permissivo amplo que viabilizará diversas condutas de natureza obscura ou, no mínimo, questionável.
Vejam o que foi dito sobre o erro grosseiro e suas condições de avaliação. Poucas atitudes de um gestor público não se enquadraram em uma das circunstâncias expostas na medida provisória, como por exemplo “os obstáculos e as dificuldades reais do agente público”. Numa realidade de pandemia, é claro que estarão presentes, sempre, obstáculos e dificuldades.
Diante de um caos sanitário, “as circunstâncias práticas que houverem imposto, limitado ou condicionado a ação ou a omissão do agente público”, sempre justificarão qualquer medida a ser tomada.
O ponto mais nebuloso, contudo, é o que se refere ao “contexto de incerteza acerca das medidas mais adequadas“. Esse trecho da MP 966 é um grandíssimo salvo-conduto para medidas como imposição de medicamentos cujo benefício no tratamento da Covid-19 não foi comprovado, ou mesmo (e talvez principalmente) decisões de imposição de quarentena mais ou menos rigorosas para a população e, sobretudo, a opção pela abertura parcial ou completa do comércio, afinal, pode-se alegar que há uma incerteza quanto a melhor medida a ser tomada.
Muitos outros pontos ainda podem ser debatidos à respeito da MP 966/2020. Destacamos apenas aqueles que não requerem um exame técnico mais aprofundado.
Importante também é lembrar que a Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro já oferece instrumentos de garantia ao administrador público no exercício de sua função, como por exemplo:
Art. 22. Na interpretação de normas sobre gestão pública, serão considerados os obstáculos e as dificuldades reais do gestor e as exigências das políticas públicas a seu cargo, sem prejuízo dos direitos dos administrados.
§ 1º Em decisão sobre regularidade de conduta ou validade de ato, contrato, ajuste, processo ou norma administrativa, serão consideradas as circunstâncias práticas que houverem imposto, limitado ou condicionado a ação do agente.
§ 2º Na aplicação de sanções, serão consideradas a natureza e a gravidade da infração cometida, os danos que dela provierem para a administração pública, as circunstâncias agravantes ou atenuantes e os antecedentes do agente.
Art. 24. A revisão, nas esferas administrativa, controladora ou judicial, quanto à validade de ato, contrato, ajuste, processo ou norma administrativa cuja produção já se houver completado levará em conta as orientações gerais da época, sendo vedado que, com base em mudança posterior de orientação geral, se declarem inválidas situações plenamente constituídas.
Parágrafo único. Consideram-se orientações gerais as interpretações e especificações contidas em atos públicos de caráter geral ou em jurisprudência judicial ou administrativa majoritária, e ainda as adotadas por prática administrativa reiterada e de amplo conhecimento público.
Os dispositivos acima apresentam mecanismos de garantia contra conhecidos excessos praticados em instâncias de controle. Contudo, em tempos de pandemia, servem perfeitamente para assegurar o agente público de que as circunstâncias excepcionais serão levadas em conta no caso de investigação de sua gestão. Tudo isso sem medida provisória, sem excessos, sem aventuras.
A certeza que fica, para nós, é que a medida veio para tranquilizar o gestor público e orientar sua atuação emergencial, mas também lhe oferece paralelamente uma proteção desmedida, desarrazoada e desproporcional a atos de desvio de finalidade, o que se apresenta como excesso legislativo que pode trazer mais prejuízos que benefícios à sociedade.
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