O Estranho Entendimento do Poder Judiciário
Recentemente nos deparamos com uma questão interessante relativa a penalizações impostas a licitantes. A situação envolvia uma empresa que sofreu a penalidade de suspensão do direito de licitar com a Administração, aplicada por um município do estado de Minas Gerais.
Pois bem, aplicada a penalidade de suspensão, a empresa ficou impedida de participar de processos licitatórios dentro da esfera daquele município mineiro, seguindo o que diz textualmente a lei geral de licitações, 8.666/93, mais exatamente no artigo 87, III.
Porém, essa mesma empresa continuou participando de licitações em outras localidades, amparada que acreditava estar no texto legal que restringe os efeitos da penalidade ao órgão que a aplicou.
No entanto, não foi o que se deu verdadeiramente.
É que a empresa, vencedora em um processo licitatório em um outro município também de Minas Gerais, viu sua vitória ser alvo de recurso administrativo de uma concorrente que apontava que a penalidade sofrida deveria, sim, ser observada por todos os demais entes e órgãos do país. Logo, a empresa penalizada estaria com seu direito de licitar suspenso em todo território nacional! Em resumo, a concorrente pretendia que a infração tivesse tratamento diferente do que está previsto na legislação.
O recurso foi julgado improcedente pela Administração do segundo município. A empresa, insatisfeita, procurou o Poder Judiciário e conseguiu a suspensão do processo de licitação.
“Ora, mas o que há de tão significativo nisso tudo?” Respondemos: muita coisa!
Vamos lá!
COMO FUNCIONA O SISTEMA DE PENALIDADES EM UMA LICITAÇÃO
Tudo estava muito simples. A lei 8.666/93 definia perfeitamente os instrumentos de punição dos licitantes inadimplentes, agravava as penas, indicava claramente o campo de efeitos no tempo e no espaço e todos seguiam felizes, sem maiores dificuldades e com segurança de atuação.
Até que o judiciário chegou inovando, dizendo o que a lei não diz, interpretando de forma ampla uma penalidade que, conforme todo estudante de direito sabe, deveria, em função de sua natureza, receber interpretação restritiva.
As penalidades administrativas, ou seja, aquelas que são aplicadas pelo próprio órgão ou ente que gerencia o contrato, sempre após a instauração de um processo onde o contratado tem direito de defesa, estão enumeradas no art. 87 da lei geral de licitações. Vamos transcrevê-la, mesmo correndo o risco de aborrecer o leitor.
Art. 87. Pela inexecução total ou parcial do contrato a Administração poderá, garantida a prévia defesa, aplicar ao contratado as seguintes sanções:
I — advertência;
II — multa, na forma prevista no instrumento convocatório ou no contrato;
III — suspensão temporária de participação em licitação e impedimento de contratar com a Administração, por prazo não superior a 2 (dois) anos;
IV — declaração de inidoneidade para licitar ou contratar com a Administração Pública enquanto perdurarem os motivos determinantes da punição ou até que seja promovida a reabilitação perante a própria autoridade que aplicou a penalidade, que será concedida sempre que o contratado ressarcir a Administração pelos prejuízos resultantes e após decorrido o prazo da sanção aplicada com base no inciso anterior.
Repare que há uma certa forma de escalonamento crescente entre as penalidades, de sorte que vão se agravando paulatinamente, embora a lei não tenha especificado em quais situações este agravamento deve se dar. Isto permite concluir que fica a critério do administrador público estipular a penalidade. Mas tal administrador é totalmente livre nesse processo?
Não.
Na imposição de pena, o gestor público, embora não esteja dito na lei, é obrigado a observar critérios de razoabilidade e proporcionalidade, além de ficar atento para a conduta a ser punida comparando-a ao efetivo dano ao erário que foi observado.
Trouxemos aqui um caso concreto. A empresa que mencionamos acima foi penalizada no inciso III do art. 87. Logo, recebeu pena de suspensão do direito de licitar com a Administração. Não sabemos qual foi a infração cometida, mas a pena, embora dura, é inferior à do inciso IV, que envolve declaração de inidoneidade. Esta, como demonstraremos, é mais grave em função da abrangência territorial.
Voltando ao assunto, a autoridade que definirá a penalidade deverá justificar a escolha e apontar, segundo critérios de razoabilidade e proporcionalidade, além dos motivos, os objetivos da penalização.
Assim, uma empresa que atrasa a entrega de material não deve, em princípio, ser penalizada com a suspensão do contrato, bastando a advertência e, talvez, a imposição de uma multa contratual. A reincidência, obviamente, permitirá o agravamento da penalidade.
Mas o que chamou atenção no caso concreto foi a forma como o Poder Judiciário modificou as regras do jogo e declarou de forma indireta que o inciso III do art. 87 não existe, ou pelo menos não existe da forma como o conhecemos.
SUSPENSÃO DO DIREITO DE LICITAR X DECLARAÇÃO DE INIDONEIDADE. SÃO, SIM, COISAS DIFERENTES E ASSIM DEVERIAM SER TRATADAS
A lei geral de licitações traz definições importantes.
A distinção entre Administração e Administração Pública é relevante no contexto da Lei 8.666/93, sendo que esta mesma se encarrega de elaborar a diferença entre ambas. Transcrevemos.
Art. 6º Para os fins desta Lei, considera-se:
XI — Administração Pública — a administração direta e indireta da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, abrangendo inclusive as entidades com personalidade jurídica de direito privado sob controle do poder público e das fundações por ele instituídas ou mantidas;
XII — Administração — órgão, entidade ou unidade administrativa pela qual a Administração Pública opera e atua concretamente;
Qualquer pessoa é capaz de perceber que, para a legislação, Administração é um conceito restrito que significa órgão ou ente separado, particularizado; enquanto que Administração Pública é definição que agrega toda a máquina estatal considerada em sua unidade, ou seja, abrange todo o país e seus milhares de órgãos, empresas e fundações públicas.
A lei não deixa nenhuma margem a dúvidas. É claríssima nesse ponto.
O já citado art. 87, III, da Lei 8.666/93, determina a suspensão do direito de licitar com a Administração. Logo, a restrição se refere exclusivamente ao órgão que proferiu a decisão de punir. Uma interpretação extensiva jamais poderia penalizar mais do que a própria lei penaliza. Não há justificativa que dê traços de legalidade a uma aplicação tão desmedida dos objetivos da lei.
O Poder Judiciário, através do Superior Tribunal de Justiça – STJ, vem decidindo que a pena de suspensão deve ser observada por todos os demais entes da federação. Aquela empresa que mencionamos, condenada por um município do interior de Minas Gerais, fica, dessa forma, impedida de participar de licitações em todo território nacional, mesmo que não tenha sofrido sanção declaratória de inidoneidade, que é justamente a do inciso IV do art. 87.
Mas qual fundamento autorizou o STJ a proferir decisões em sentido diferente do texto legal?
O POSICIONAMENTO DO JUDICIÁRIO: STJ E O INTERESSE PÚBLICO CAPITANEANDO A INSEGURANÇA E O DESRESPEITO À LEI
Conforme dito, o STJ vem reiteradamente ampliando o tipo legal do art. 87, III, da Lei 8.666/93, com o objetivo de lhe dar contornos de verdadeira declaração de inidoneidade, contrariando, obviamente, a dicção da regra.
Trazemos um trecho da decisão proferida no Recurso Especial 151.567/RJ, para ficar claro:
‘É irrelevante a distinção entre os termos Administração Pública e Administração, por isso que ambas as figuras (suspensão temporária de participar em licitação (inc. III) e declaração de inidoneidade (inc. IV) acarretam ao licitante a não-participação em licitações e contratações futuras. A Administração Pública é una, sendo descentralizadas as suas funções, para melhor atender ao bem comum. A limitação dos efeitos da ‘suspensão de participação de licitação’ não pode ficar restrita a um órgão do poder público, pois os efeitos do desvio de conduta que inabilita o sujeito para contratar com a Administração se estendem a qualquer órgão da Administração Pública’
Trata-se de uma evidente confusão entre a análise de um instituto jurídico (Administração Pública) e a penalidade escolhida pelo legislador para alcançar condutas previamente ponderadas na proporcionalidade e razoabilidade.
A decisão tem por princípio a preservação do Interesse Público, cuja definição é genérica e abstrata e que, a rigor, serve de justificativa para qualquer atitude de uma agente público, dado seu conteúdo vago.
O interesse público, a nosso ver, é observado principalmente por meio do cumprimento, pelos poderes públicos, dos direitos e princípios constitucionais e legislação inferior que disciplinam, no caso, as licitações e contratos administrativos. Ou seja, o respeito às normas emanadas do Poder Legislativo, que detém a legitimidade para inovar o sistema jurídico nacional, ao contrário do Poder Judiciário. Todo o resto é uma abstração perigosa.
Um ponto significativo é tentar imaginar o que poderia ter gerado a penalidade de suspensão do direito de licitar. Ora, nos parece crível que muitas vezes tal penalidade se dá em função de atraso na entrega de material num contexto em que, por exemplo, a empresa vem tentando, sem sucesso, reequilibrar econômica e financeiramente seu contrato, ou ainda quando a relação entre esta empresa e o gestor do contrato encontra-se abalada por desavenças anteriores ligadas à forma de execução do ajuste.
Muitas coisas podem ensejar a cominação da penalidade, por esse motivo existe o dever da aplicação proporcional e razoável da pena.
Outro ponto: uma relação contratual conflituosa em um órgão não é a garantia de que a empresa contratada não representará a contratação mais vantajosa em outro ente público. E, nesse caso, o abstrato interesse público se concretiza e salta aos olhos!
O que não parece sujeito a dúvidas é que a lei, assim como todo o sistema jurídico, optou por descrever punições em escala crescente de rigor, obedecendo nitidamente aos consagrados princípios administrativos da proporcionalidade e razoabilidade.
Irrazoável e desproporcional passa a ser a decisão que desconsidera a letra clara e livre de obscuridades da lei e, em nome de algo maleável, assevera uma penalidade totalmente fora dos contornos legislativos, afetando um rigor que, em última instância, pode vir a prejudicar o erário ao furtar-lhe a possibilidade de contratações mais eficientes.
Assim, a suspensão do direito de licitar, embora objeto de debate nos tribunais, precisa ser combatida pelos licitantes para que se restrinja a seus contornos objetivos, garantindo a segurança jurídica das contratações com o setor público.
SOLUÇÃO ESTÁ EM SABER EVITAR. E AGIR ANTES!
Já escrevemos sobre 6 motivos para você começar a participar de licitações agora! E 6 dicas para os primeiros passos.
Acreditamos realmente que vender para o setor público é uma excelente forma de aumentar os negócios de uma empresa. Acreditamos também que um fluxo de contratos com o governo pode fazer uma empresa subir de nível no mercado.
Porém, é preciso dizer que as coisas não são simples. Problemas com os gestores públicos podem acontecer e a situação, caso não enfrentada com agilidade, pode prejudicar muito a empresa ante os entes fiscalizadores.
Aqui na BRAVO Consultoria Online sempre recomendamos aos clientes que procurem estar um passo à frente da Administração Pública neste ponto. Afinal, é o empresário que sabe, antes do gestor público, a situação de seus produtos/serviços, formação de preço, valores, carga tributária, situação com fornecedores, etc.
Portanto, cabe ao empresário licitante agir antes.
Após todas as precauções com estoque, negociação com fornecedores e estratégia de fornecimento, que já foram abordados aqui, é fundamental que o empresário esteja imbuído de espírito proativo a fim de lançar-se diante de complicações antes delas se tornarem problemas reais.
Logo, fundamental é que, na iminência de fator complicador do fornecimento, o empresário procure formalmente o órgão público e inicie uma rodada de negociações envolvendo, inclusive, reuniões com ata de assuntos assinada por todos os presentes, pedidos de reequilíbrio ou redimensionamento do contrato.
É bom ter em mente que não interessa para a Administração Pública o desabastecimento; logo, é possível, sim, negociar condições sobretudo diante de crises pontuais, sejam de mercado ou econômicas, gerais ou individuais.
Bem, estas são as breves considerações a respeito da suspensão do direito de licitar que, como exposto, vem se tornando um tormento a mais para o meio empresarial na medida em que, de acordo com o judiciário, possui um campo de aplicação superior ao definido em lei.
Em condições como as dadas, a solução passa pela sempre esperada resiliência do empresário licitante que, ao final, luta contra os poderes constituídos para continuar seguindo seu caminho, visando gerar e distribuir riqueza. Ops! Olha o interesse público concreto aí. Boa sorte nas disputas e conte sempre conosco!